domingo, 14 de outubro de 2012

Terapia Narrativa (Parte I)


Eram cinco da manhã quando ela tomou a decisão final.  Passara a madrugada em claro, encarando aquele pequeno pote de veneno para ratos. Conversara com alguns amigos no dia anterior, todos por telefone. Não queria ver ninguém, não queria que lhe tirassem o direito de encerrar a própria vida. Não dessa vez.
Desceu as escadas da casa em que vivia. A vida era apenas a casa, sob seu ponto de vista. A vida, em toda sua imensidão falseada pelos felizes rapazes e moças da faculdade era apenas uma casa. E ninguém estava lá para dizer-lhe os outros sentidos, que lhe demovessem da ideia de suicídio.
Um copo de leite. “É para rebater”, pensou a ironia, vazia de riso. O copo de leite estava em suas mãos, o pote de veneno de rato também. Experimentou a primeira das bolinhas. Tinha um gosto amargo, como todos os elementos importantes da vida. Amargo. Antes que se arrependesse por covardia, ingeriu o resto do pote em suas mãos, engolindo-os como pílulas ao leite.
Não demorou muito  a fazer efeito. Sentiu as ânsias de vômito e correu para o banheiro. Vomitara o almoço, e podia ver as bolinhas de veneno entre o que estava sendo regurgitado. Não queria a ajuda de ninguém. Nem por um segundo pensou em desistir da morte, até que entrou em coma.
O lugar tinha pé direito alto, pensou. Não possuía mais corpo, era como se enxergava enquanto viva, apenas um filete de pensamento deslocado do resto do corpo. Podia ver, mas não haviam imagens. Era o misto do som com cores o que estava acontecendo. Odores a comprimiam e não havia sabor ou tato.
Choravam em silêncio a sua morte. Deste filete que era ela mesma, podia ver os amigos reunidos, os familiares chorando e o pai. Detestou aquele segundo de culpa  misturado com arrependimento por abandonar o pai. Nas últimas vezes, ele sempre dissera: “minha filha, eu te amo tanto”. E agora, o que seria do pai? Dos irmãos, que se esforçavam tanto para entendê-la em sua autoculpa. Podia sentir a todos, mesmo sem vê-los. A carga emotiva e sensorial do lugar era exatamente o oposto do que ela sentia em vida. Era como se ela, a vida, pudesse ser posta, cara e coroa, morte e vida. Tudo o que lhe faltava em vida estava ali, disposto, reunido nessas outras pessoas.
“As vezes, só lhe faltava uma visita ou outra para ir lhe completando. É tão triste que você só se sinta completa depois de desistir de viver isso de fato.” Reconhecia a voz. Era a sua avó paterna, morta a anos.
“Vó, o que é a morte?”
“A morte, minha filha, é como a vida. Temos contas a pagar, emocionais. Eu não aconselharia contar quantos os carmas emocionais que deixei, pois foram muitos. Eu era ignorante e não dei nada a nenhum dos meus filhos. Hoje, os acompanho por não saber que dar de sabedoria a eles. Sempre que chamam por mim, saudosos, eu estou lá. E ficamos aqui, na expectativa de conceder um milagre a alguém e sentir-se pago em carma.”
Não tinha olhos, mas via a própria mãe. Sentia seu choro.
“Vó, eu vou ter de ajudar a todos esses que me acompanham aqui nessa sensação de estar presente?”
“Sua mãe sempre acreditará que quem precisa de ajuda é você; seu pai e seus irmãos também. O suicídio é um tabu porque exige mais trabalho em morte que exigiu em vida.”
A menina em dúvida buscava o causador da dor que lhe fez desejar tão intensamente a morte. Sentiu um puxão. Com o tempo entenderia que aquilo era como teletransportar-se. Podia sentir o cheiro de cimento batido, e um choro baixinho. Ele estava sozinho, em casa.
“Eu estou bem, Davi. A culpa é minha de esperar tanto por você no final dos verões e primaveras, e não da sua recusa.”
Era isso. Matara-se por inanição de amor. Jamais conseguiria explicar. O choro baixinho subiu um pouco o tom, e ela virou o soluço no choro dele. Operaria um milagre na vida dele, nem que isso lhe custasse a morte.
Outro puxão. Era o soluço do pai, que pressentia sempre quando Davi pensava em Luisa. Luisa se matou, deixando o pai desgostoso e com raiva. Era covardia não operar um milagre em sua vida. Sussurrou no ouvido de sua esposa, “talvez seja bom dar filhos a ele”.
Voltou a  Davi: “ela mereceu esse tempo da vida, tinha a alma velha e cansada de tudo”.
Só o soluço suspenso lhe valia uma alma.
“Estou livre para ser o que pensei que seria em vida.”

memória de vida passada em signisciência